quinta-feira, 1 de março de 2012

Transcrição de «O cuidar e sospirar», excerto do «Cancioneiro Geral», de Garcia de Resende



APRESENTAÇÃO DA OBRA



           Garcia de Resende (1470? – 1536) nasceu em Évora. Ingressou, em 1490, na corte, como moço de Câmara de D. João II (1481-1495) e foi, mais tarde, seu moço de escrivaninha, cargo que ocupou até à morte do monarca, em 1495. Em 1514 fez parte da faustosa embaixada enviada por D. Manuel I (1495-1521) ao Papa Leão X, na condição de secretário-tesoureiro. Recebeu o título de fidalgo da casa do rei. Em 1516 foi feito escrivão da fazenda do príncipe herdeiro, futuro rei D. João III, o qual serviu durante os primeiros 15 anos do seu reinado. Garcia de Resende gozava de grande prestígio na corte por possuir uma vasta cultura e ser espirituoso, tendo recebido grandes bens pela dedicação com que serviu os três reis. Foi poeta, trovador, historiador, cronista, arquiteto, músico e desenhador. Passou os últimos anos da sua vida nas suas terras em Évora.
Escreveu Vida e Feitos del Rei D. João II, Cancioneiro Geral (1516), Crónica de D. João II (1545) e Miscelânea e Variedade de Histórias (1554), em redondilhas.
A ideia de compilar o Cancioneiro Geral inspira-se no Cancionero General de Hernandez del Castillo, publicado em 1511. O Cancioneiro Geral consiste numa recolha de material poético, em língua portuguesa e castelhana, produzido nas cortes de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel. Nele participaram 286 poetas que produziram cerca de 1000 composições (trovas, coplas, glosas, vilancetes, cantigas, poesia de arte maior), das quais cerca de 10% são em castelhano e quase todas por autores portugueses.
No Cancioneiro Geral, Garcia de Resende escreveu o Prólogo dedicado ao Príncipe D. João, futuro Rei Piedoso, e compôs Trovas à Morte de D. Inês de Castro, sendo, por isso, considerado por alguns historiadores como o iniciador do ciclo dos Castros. No Prólogo, Garcia de Resende afirma as razões da sua compilação: fazer perdurar toda a composição poética do passado, («cousas de folgar e gentilezas»), criticar a morigeração dos costumes por meio da sátira e estimular os portugueses a escreverem, sobretudo para preservar a memória dos Descobrimentos. Garcia de Resende afirma: «determinei ajuntar alguas obras que pude haver d’ algus passados e presentes e ordenar este livro, nam pera por elas mostrar quaes foram e sam, mas pera os que maes sabem s’ espertarem a folgar de escrever e trazer aa memoria os outros grandes feitos, nos quais nam sam dino de meter a mão».
No século XV, à semelhança das grandes cortes europeias, torna-se indispensável ao cortesão saber compor versos (a arte de trovar) como demonstração de espírito e de cultura. Nos serões do paço, em torno do rei, recitava-se poemas, muitas vezes sobre temas banais como as coisas do coração, disputavam-se concursos poéticos, ouvia-se música, galanteava-se, jogava-se, realizavam-se pequenos espectáculos de alegorias ou paródias, tentando apurar o estilo, com o objetivo de animar os serões palacianos. O Cancioneiro Geral é o reflexo da vida palaciana, pelo seu caráter lúdico, ligeiro e circunstancial e pelas formas engenhosas, subtis e estilizadas.
No Cancioneiro Geral encontramos o tema do lirismo amoroso e banal, tradicional, a influência de Petrarca, a sua conceção do amor desinteressado ou ligado a um objeto inacessível, deliciando-se no sofrimento e na autocontemplação. Encontramos também influência clássica na construção sintática, em alusões à mitologia, nas poesias elegíacas, poesias heróicas e na áurea mediania. Também se discute os problemas da época, como a perda de valores e a corrupção decorrente da expansão marítima. Há cânticos à Virgem Maria, a Santo André e temas bíblicos e morais. Também consta a poesia histórica e heróica e a poesia didática. Nas sátiras criticam-se os costumes, as intrigas da corte, defendem-se os antigos padrões da nobreza e as vantagens da vida rústica.
O verso é mais rigorosamente medido no Cancioneiro Geral do que o verso dos trovadores e surgem novos agrupamentos estróficos. Domina a redondilha, sobretudo a redondilha maior, «arte menor» ou «arte real». Caíra em desuso a estrutura paralelística e repetitiva e aparece a glosa, volta (ou desenvolvimento) de um mote colocado à cabeça da poesia e repetível como refrão, estrutura de inspiração castelhana, trabalhada com muito engenho e subtileza pelos poetas. Algumas composições deixam transparecer um emocionante lirismo, outras uma notável musicalidade (harmonia e ritmo), outras mostram afetação, outras o jogo de subtileza e o engenho dos poetas.

            O excerto a seguir transcrito, retirado de «Cuidar e sospirar», do Cancioneiro Geral de 1516, pertencente à Biblioteca Nacional de Portugal, consiste numa longa discussão poética, sob forma de galanteio, dentro do ambiente palaciano. Dois poetas, Jorge da Silveira e Nuno Pereira disputam o lugar de melhor amador de uma dama da corte, Dona Lianor da Silva. O primeiro argumenta que deixa transparecer o seu amor suspirando e o segundo afirma que abafa o amor dentro do peito, mas que cuida pela dama. Em coplas alternadas os dois vão defendendo os seus pontos de vista, demonstrando a sua capacidade silogística e a sua arte de poetar. Intervêm quase uma dezena de poetas e a discussão da casuística amorosa, muito em moda nas cortes da época, assume o aspeto de um processo judicial, com veredito final. A dama toma a sentença a favor do poeta que ama suspirando, mas o processo sobe ao Tribunal do Deus do Amor que decide finalmente pelo amante que cuida. Toda esta composição é uma discussão sobre as subtilezas do amor, sendo, sem dúvida, uma novidade.


CRITÉRIOS DE TRANSCRIÇÃO

Casos em que se mantiveram as formas do original

- As diferentes formas ortográficas vigentes na época para uma mesma palavra, com reflexo na oralidade. Ex: pregunta / pergunta ; concrudo / concluda.
- As formas que, sendo próprias da época, atualmente já não existem. Ex: craro.
- Os ditongos ae, ea, oe e eo, uma vez que são etimológicos.
- As vogais orais. Ex: peraatrebuidos.
- As vogais orais geminadas, etimológicas ou não. Ex: fee.
- Algumas palavras que não obstam à compreensão do seu significado. Ex: ja ; sa.

Casos em que se procedeu a alterações

- É introduzida pontuação sempre que necessária à boa compreensão do texto, respeitando sempre o sentido deste, a saber: o ponto final <.>, a vírgula <,>, o ponto e vírgula <;>, os dois pontos <:>, o ponto de interrogação <?>, o ponto de exclamação <!> e o travessão para introduzir as falas <->.
- Uso de letras iniciais maiúsculas para os nomes próprios e topónimos.
- Os pequenos traços oblíquos que aparecem no final de alguns versos foram eliminados.
- A nota tironiana é representada por <e>.
- Omite-se a cedilha quando seguida de vogal e ou i.
- Foram introduzidos acentos agudos em palavras suscetíveis de serem confundidas com homónimas. Ex: nosnós.
- Foram introduzidos acentos circunflexos a fim de transparecer a pronúncia de certas formas. Ex: merçemercê.
- Foram introduzidos acentos circunflexos também para facilitar a compreensão de determinadas formas.
Ex: vos irmão acorrermes / em tam la consultares – vós, irmão, acorrer-m-ês / entam lá consultarês.
- A separação de algumas palavras é sujeita ao modelo atual: por vezes é feita a simples separação das palavras, outras recorre-se ao uso do hífen nas apoclíticas, outras recorre-se ao apóstrofo, para manter a pronúncia.
Ex: ca motolhe meu cuydadoca mo tolhe meu cuidado
                  ouuyrnosouvir-nos.
                  que lha damdo – qu’ em lha dando.           
- São desenvolvidas as abreviaturas. Ex: qresqueres ; q – que ; qll – qual ; nº  - nos.
- Os grafemas <i>, <y> e <j> com valor vocálico ou semivocálico são transcritas por i.
- O grafema <y> com valor vocálico ou semivocálico é transcrito pela vogal <i>, segundo a norma atual. Ex: despoysdespois.
- O grafema <u> com valor consonântico é transcrito por <v>. Ex: uivo – vivo.
- Foi regularizada a forma qua nos casos em que possui um sentido causal, tendo sido transcrita para ca.
- As consoantes geminadas, em posição intervocálica, medial ou final são reduzidas a consoante simples. Ex: rrifam – rifam ; pellopelo ; mall – mal.
- Foram substituídas as consoantes simples com valor de sibilante surda em posição intervocálica por consoantes geminadas. Ex: asazassaz.
- São reduzidas a uma única consoante as consoantes em sílaba anterior que não sejam etimológicas nem interfiram na pronúncia. Ex: consselhado - conselhado.
- São atualizadas formas que não são etimológicas nem implicam mudanças fonéticas. Ex: desigoaesdesiguaes.
- No caso de formas em que aparece <gu> seguido de vogal, tendo o <g> valor de oclusiva, foi eliminado o <u>. Ex: diguodigo.
- Nas formas em que aparece uma vogal nasal em sílaba anterior, antes de consoante, a vogal é seguida de <m> ou <n> . Ex: cuydãdocuidando ; ãbos - ambos.
- Em determinadas formas em que aparece vogal nasal em sílaba final, essa vogal passa a ser seguida de <m>. Ex: tençã – tençam.
- Em formas em que aparece vogal seguida de <m> em sílaba anterior, sendo a norma atual vogal seguida de <n>, procedeu-se à atualização da palavra. Ex: ferymdoferindo.
- O grafema <h> não etimológica não aparece na transcrição. Ex: hisis ; heé.                                                                   
- É introduzido o grafema <h> em palavras onde pareceria estranho a sua não existência.
Ex: onesta – honesta.
- Nos casos em que aparece a forma ca com sentido relativo (que a), foi regularizada a forma, de maneira a respeitar o sentido e ser mais facilmente compreendida pelos leitores.
Ex: saa hy cousa mays sobida: / ca cousa que se vº chamas’ haa i cousa mais sobida /  qu’ a cousa que se vos chama.



TRANSCRIÇÃO DE UM EXCERTO DO TEXTO

O cuidar e sospirar


Pregunta que fez Jorge da Silveira a Nuno Pereira porque indo ambos por uu caminho vinha Nuno Pereira muito cuidoso e Jorge da Silveira doutra parte dando muitos sospiros, sendo ambos servidores da senhora dona Lianor da Silva.

Pregunta Jorge da Silveira e reposta de Nuno Pereira, tudo neste rifam.




- Vós, senhor Nuno Pereira,    1
por quem is assi cuidando?        
- Por quem vós is sospirando,
senhor Jorge[1] da Silveira?

   Jorge da Silveira.                

Nam que eu sospiro indo         2
por quem cuidados me dá
e me vai assi ferindo,
que de todo destroindo
me vai seu cuidado ja.
Cuidar é causa primeira,
mas despois d’ eu ir cuidando,
meus sospiros vam dobrando
tá matar à derradeira.

        Nuno Pereira.

Ter poder de sospirar              3
assaz é, senhor cunhado,
pera mais desabafar,
mas eu nam tenho lugar,      
ca mo tolhe meu cuidado.
Porque é de tal maneira
que por quem eu assi ando
deve d’ andar preguntando:
- Morreo ja Nuno Pereira?

    Jorge da Silveira.

Pois vosso cuidar querês       4
esforçar e defender,
e mostrar no que fazês
que moor pena recebês
que sospirar e gemer,
com fee de servir inteira,
a quem nos fere matando
vamos tristes demandando
que julgar isto nos queira.

          Nuno Pereira.

Sendo sa mercê contente       5
ca ouvir-nos se encline
serei mais que recontente
que nossa questão presente
ela veja e determine.
E tenhamos nós maneira
d’ irmos petição formando
de tal forma qu’ em lha dando,
ela por nós lho requeira.

De Jorge da Silveira e
de Nuno Pereira, ambos juntamente, em modo de petiçam.

Pois que, senhora, nacestes        6
por dar morte e nunca vida,
pois que ambos nos vencestes
com vosso mal que nos destes
de morte não conhecida,
que no al nos desempare
de todo vossa mercê,
sospirar, cuidar decrare
quem se neles vir ou vê
cuja morte maes se crê.

Desembargo posto nas costas desta petiçam, por mandado da dita senhora.

Se estes competidores                7
querem seguir este feito,
ordenem precuradores
e digam de seu dereito.

De Nuno Pereira em que toma seus precuradores pera ajudarem sua tençam por parte do cuidado, segundo mandado da dita senhora.
Eu par’ esta altrecação            8
tomo por ajudadores
Joam Gomez e Dom Joam,
qu’ ajudem minha tenção
como meus precuradores;
e façam ser esta cousa
nos amores conhecida:
que quem sospira, repousa,
e u cuidado bem pousa,
nom tem sospiros nem vida.

Jorge da Silueira, em que satisfazendo ao desembargo, toma seus precuradores
por parte do sospirar.

Em cousa de si tam crara          9
escusado era debate,
e eu logo o escusara,
s’ a senhora o julgara,
que me mata que nos mate.
Mas pois vós, senhor, metês
remo d’ ajuda que vogue,
vós, irmão, acorrer-m’-ês,
entam lá consultarês
onde sangue se nam rogue.

Pera o qual vos dou poder,     10
tanto quanto posso dar,
pera por mim requerer,
alegar, contradizer,
consentir e apelar;
por em minh’ alma jurardes,
como quer lá o dereito,
pera meus beens obrigardes,
mas nam pera concertardes
tá ver vitorea do feito.

Segue-se o primeiro rezoado de Dom Joam de Meneses, precurador de Nuno
Pereira, por parte do cuidado contra o sospirar.

Ha ja tanto que nam vivo          11
sem sospiros e cuidados
e sem tanto mal esquivo
que por mim, triste cativo,
bem podereis ser julgados.
Mas a vós, senhor cunhado,
não vos deve d’ ajudar
quem for muito namorado,
que quem morre de cuidado
é-lhe vida sospirar.

E mais irdes preguntando         12
a quem vos nam preguntava
por quem is vós sospirando,
é sinal qu’ em ir cuidando
muito moor paixam levava.
Nam digo ja que falar
foi sinal de pouca pena,
mas da pena qu’ ee cuidar
descanso é sospiros dar
e sa dor é mais pequena.

Os cuidados desiguaes              13
sempre deram mortaes dores;
sospiros nam doem maes,
que quanto sam us sinaes
de quem sente mal d’ amores.
Pelo qual devem de dar
sentença defenetiva
qu’ ee muito mor dor cuidar,
ca quem pode sospirar
inda tem por onde viva.

Sua à senhora Dona Lianor.

Senhora, pois vedes craro         14
que cuidar tem por conforto
sospiros e por emparo,
nam leixês de desemparo
morrer a quem vinha morto.
Nem julguês por afeiçam
sospiros por moor trestura,
por nam ser contra razão
ò reves em condiçam
do que soes em fremosura.

Rezões de Joam Gomez, precurador de Nuno Pereira, por parte do cuidado contra o sospirar.

Metem aceso cuidado               15
amores com suas triscas
de pensamento forçado,
com fogo desesperado,
com sospiros sas faiscas.
Cuidado paixam ordena,
cuidado nunca descansa,
cuidado redobra pena,
cuidado nunca s’ amansa,
cuidado sempre tem lena.

Os sospiros e gemidos              16
como faiscas s’ apagam
com descanso dos sentidos
a quem sam atrebuidos,
porque sospirando pagam.
Mas u cuidado mui vivo,
nacido no coraçam
do triste amador passivo,
é uu cabo de paixam
qual mais nam sofre cativo.

Quem sofre cuidado tal,           17
sem topar algum remanso,
sofre fadiga mortal
e paixam tam desigual,
que nam dá nenhum descanso.
A pena que é mais fera
na vida de bem amar
cuidado que persevera,
quanto mais se o cuidar
é no que se desespera.

E assi concrudo que                 18
o cuidado soo per si
é pena que nam tem sê
nem guarida em qu’ estê,
segundo sempre senti.
O cuidado que concluda
em gemidos e sospiros,
com esperança s’ ajuda,
poes tem descansos a giros
em que seus males remuda.
    
     Sua à dita senhora.

Dama de grã fremosura,           19
espelho das outras damas,
linda, honesta fegura
dama da melhor ventura,
das que sam e temos famas,
deve vossa senhoria
julgar o crime cuidado
por pena de namorado,
sospiros por fantesia.

Rezões que deu Nuno Pereira em favor de seu cuidado, ajudando seus precuradores.

Narciso, Mancias morrerão       20
de soo cuidados vencidos!
Oh, quantos ensandecerão
mui sesudos, que perderão
com cuidados seus sentidos!
A que se chama pasmar,
que cousa é esmorecer
senam querer abafar,
sem poder esfolegar?
E sospirar é viver.

Se o dissesse Oriana,                21
e Iseu alegar posso,
diriam[2] quem se engana,
que sospiros sam oufana,
cuidado, quebranto nosso.
Deriam – Quem alegou
sospiros contra cuidado,
nunca bem se namorou,
ca o que a nós matou
mata todo namorado.


Se os que sam ja finados              22
e que d’ amores morreram
podessem ser perguntados,
diriam que com cuidados
a vida e alma perderam:
a vida em esperando
com cuidados e tristeza,
e alma desesperando,
eles mesmos se matando
com cuidar qu’ ee moor crueza.

O cuidado desbarata                     23
todos grandes corações,
e os aperta e os mata
com fantesias que cata
de desvairadas paixões.
Mas ond’ ele anda manso,
que sospiros de si manda
j’ el’ entam em si abranda,
sospiros vêm por descanso.

     Sua a Jorge da Silveira.

Diz-m’ a mim meu coraçam,       24
porque m’ a isto nam calo:
- Pera  que vos dou rezão,
pois vos nam chega paixam
deste cuidado que falo?
Ca se vos ele apertasse
assi como m’ ele aperta
e o vosso assi penasse,
dirieis que se julgasse
o cuidar por morte certa.


   Trova sua à dita senhora.

Cuidado de minha vida,              25
vos chamo sempre por nome,
daqui vossa mercê tome    
s’ haa i cousa mais sobida
qu’ a cousa que se vos chama
por milhor nome que posso,
ora vede se é vosso
quem de vós mesma brasfama.

Cantiga sua à dita senhora.

O cuidado mui sentido,               26
donde morte se m’ ordena,
é qu’ havês de ter marido
e eu sempre minha pena.

E naquisto contemprando,          27
vai crecendo desconforto,
que desmaio em cuidando
e caio mil vezes morto
e fora de meu sentido,
com tal morte qual s’ ordena
pera mim ver-vos marido
sem vós verdes minha pena.

Começão as razões por parte do sospirar contra o cuidado e logo Francisco da Silveira, precurador de seu irmão.

S’ achardes quem bem descarne     28
as raizes do amar,
dir-vos-am que sospirar
é partir alma da carne.
Pois sede bem conselhado,
nam apodês o cuidado
com sospiros que sam morte,
nem ha i quem nos[3] comporte
senam fino namorado.

Nam vos engane cuidardes             29
que sabeis alegações
nem que valem taes rezões
polas bem aperfiardes.
Porque quem há-de julgar
nam n’ havês vós d’ enganar
nem lhe fazer entender
preto branco parecer,
nem bom vosso aperfiar.

Porque sospirar nam vem               30
senam ja de nam ter vida,
o cuidar cous’ ee sabida
qu’ outros cem mil frutos tem.
De mil cousas vem cuidar
assi com’ ee demandar
morgados e dar libelo,
entam fazer parte delo
pera vir ao contestar.

Nam vos alego passados,               31
ca bem craro é de saber
que com sospiros morrer
é ja certo aos namorados.
Mas alego-vos comigo       
que des que amores sigo
sempre neles andei morto:
cuidar trazia conforto,
sospirar morte consigo.

Trova sua à dita senhora.

Se mercê fazer querês           32
em al, seja a meu cunhado
mas vir de maes namorado
sospirar nam lhe tirês.
Ca primeiro vem cuidar
e pós ele o esmaiar,
entam logo o sospiro
que é, senhora, uu tiro
que faz vidas apartar.

Trova sua ao Coudel-moor em que lhe pede ajuda a seu cabo neste feito, em favor do sospirar.

Por cessar esta conquista      33
sobr’ esta perfia nossa,
compre-nos ajuda vossa
por a cousa ser maes vista.
E por isto, senhor, queira
vossa mercê ter maneira
como nos aqui ajude,
ca visto é que mal concrude
seu cuidar Nuno Pereira.


GLOSSÁRIO

Pág.
Estrofe
Significados
5
1.º subtítulo do poema
cuidoso: cuidadoso.
5
2.º subtítulo do poema
rifam: poema breve e vulgar.
5
2
sospiro indo: vou suspirando.
5
2
tá matar à derradeira: até matar na hora da morte.
5
3
tolhe: 3.ª p. sgl. do verbo tolher (impedir).
5
4
querês: 2.ª p. pl. do v. querer.
5
4
esforçar: provar, enaltecer.
5
4
demandando: gerúndio do v. demandar (pedir).
5
5
ca: conjunção causal, porque.
6
5
recontente : muito contente.
6
6
no al: no resto.
6
6
decrare: do v. decrarar (declarar, referir, asseverar).
6
8
altrecação : do v. altracar ou altrecar (discutir, disputar, argumentar).
6
9
crara: fem. de craro (claro, evidente).
6
10
concertardes: 2.ª p. pl. do v. concertar (concertar, estar de acordo).
7
10
tá ver: até haver.
7
Título da estrofe 11
rezoado : arrazoado, alegação de direito, exposição de razões a favor ou contra, litígio.
7
14
 leixês: 2.ª p. pl. do v. leixar (deixar).
7
14
ò reves: o contrário.
7
15
triscas: rixas, brigas.
7
15
lena: alento, vigor.
8
17
remanso : descanso, sossego, tranquilidade.
8
18
concrudo: 1.ª p. sgl. do v. concrudir (concluir).
8
18
: assento, repouso.
8
18
qu’ estê: que esteja.
8
18
giros : pl. de giro - giro, trabalho, tarefa.
8
18
remuda : 3.ª p. sgl. de remudar - mudar novamente, tornar a mudar.
8
20
Narciso: filho de uma ninfa, apaixonou-se pela própria imagem refletida na água, deixando de beber e de comer, morrendo de consum«ção.
8
20
Mancias: trovador galego do século XV, símbolo de todos os enamorados, foi morto com uma lança pelo marido da dama a quem devotamente serviu.
8
20
sesudos: sérios, prudentes.
8
20
esfolegar: tomar fôlego, respirar.
8
21
Oriana: amada de Amadis, o cavaleiro apaixonado que é protagonista da novela de cavalaria Amadis de Gaula que corre aventuras pelo «serviço amoroso»
8
21
Iseu: Isolda, amada de Tristão. Isolda e Tristão são o par de amorosos da Idade Média.
8
21
oufana: por ufania, orgulho, ostentação.
9
23
 j’ el’ entam: já ele então.
9
25
s’ haa: se há.
9
25
sobida: alto, sublime, excessivo, pomposo.
9
25
brasfama : do v. brasfemar (blasfemar, dizer mal de alguma coisa, insultar).
9
27
naquisto : nisto.
9
27
contemprando : gerúndio do v. contemprar (contemplar, observar atentamente, meditar).
9
28
descarne : 3.ª p. sgl. do v. descarnar (tirar, separar, apartar).
10
28
apodês : 2.ª p. pl. do v. apodar (dirigir apodes, zombar, alcunhar).
10
29
aperfiar : aporfiar, lutar, combater, insistir, teimar.
10
30
 libelo: exposição articulada do que se pretende provar contra um réu, acusação.


    
BIBLIOGRAFIA


Antologia do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, selecção, organização, introdução e notas por Maria Ema Tarracha Ferreira, Ulisseia, s/l, 1994.

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, apresentação crítica, selecção, notas, glossário e sugestões para análise literária de Cristina Almeida Ribeiro, Editorial Comunicação, Lisboa, 1993.

Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, fixação de texto e estudo por Aida Fernanda Dias, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990.

Garcia de Resende e o Cancioneiro Geral, introdução e notas de Andrée Crabbé Rocha, Lisboa, Centro do livro brasileiro, 1973.

RESENDE, Garcia de, Cancioneiro geral : cum preuilegio, impresso por Hermã de Campos, Lisboa, 28 Setembro 1516.

SARAIVA, António José e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17.ª ed., Porto Editora, Porto, 1996.  






[1] No texto original encontra-se Gorge.
[2] No original encontra-se daryam.
[3] quem os.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A decisão de não publicação do livro "The Jewel of Medina", de Sherry Jones, pela Random House e pela Porto Editora – implicações no mundo editorial


Apresentação do tema

         Aquilo que pretendo discutir neste ensaio são as consequências e as implicações editoriais decorrentes da decisão de editar ou não um livro polémico como The Jewel of Medina, de Sherry Jones.
Sherry Jones, jornalista profissional desde 1979, foi vencedora de inúmeros prémios e a sua obra publicada em revistas como Newsweek, CMJ, Southwest Art e Rider. É correspondente dos estados de Montana e Idaho do Bureau of National Affairs, uma agência noticiosa internacional da região de Washington, D.C., e correspondente da Women's e-News. The Jewel of Medina é o seu primeiro romance.
Apesar de nunca ter visitado o Médio Oriente, a autora, movida pelo interesse pelos muçulmanos após os atentados de 11 de Setembro de 2008, passou vários anos a estudar história árabe, pesquisando sobre o profeta Maomé e leu estudos sobre Aisha, uma das mulheres do profeta. Decidiu então escrever o seu romance para dar a conhecer ao ocidente a essência do Islão e mostrar como este foi distorcido pelos radicais islâmicos. Sobre a situação das mulheres no Islão, afirma que Maomé apoiou mais direitos para as mulheres do que muitos dos seus seguidores modernos. A autora afirma que escreve conscienciosamente sobre o Islão e sobre Maomé de uma forma respeitosa e refere que queria contar a história das mulheres em torno de Maomé, honrá-las, bem como o profeta.
The Jewel of Medina é um romance que conta a linda história de Aisha, desde o seu casamento com Maomé, aos nove anos, até à morte do profeta. É uma história de amor e intrigas passada no século VII, por altura do nascimento da fé islâmica, um período de convulsões. O livro aborda o tema da emancipação das mulheres através de Aisha que usa a sua sabedoria, coragem e a espada para ter o controlo da sua própria vida, combater a perseguição religiosa, os seus rivais e defender o estatuto de primeira mulher de Maomé, ainda que o profeta se continue a casar mais do que uma vez. Aisha acompanha devotamente Maomé na maior parte do romance, aconselhando-o, e acaba por se tornar uma das mais importantes mulheres do Islão, defensora acérrima do legado de Maomé.


Publicação controversa
           
O processo de publicação de The Jewel of Medina tem sido controverso e cheio de contratempos. Segundo informações da autora à Reuters, a Random House, uma das maiores editoras dos Estados Unidos, já tinha pago 69 mil euros a Sherry Jones pelo romance e por uma segunda obra. A publicação da obra estava prevista para 12 de Agosto de 2008, estando também preparada uma digressão publicitária do livro por oito cidades quando rompeu o contrato. Apesar do livro ter tudo para se tornar um best-seller, a editora acabou por recusar a sua publicação, depois de a ter adiado.
A decisão da editora veio a público na coluna de Asra Nomani, escritora e académica muçulmana, no jornal norte-americano The Wall Street Journal. No seu artigo, Nomani afirma que, numa entrevista, o subeditor da Random House, Thomas Perry, representante da editora, informou que a empresa fora aconselhada a ter em conta, «não apenas que a publicação deste livro poderia ser ofensiva para alguns membros da comunidade muçulmana, como também incitar à violência por parte de um segmento pequeno mas radical»[1], acrescentando que, depois de consultar vários especialistas em Islamismo, a empresa decidiu, « adiar a publicação, para segurança do autor, dos empregados da Random House, dos livreiros e de qualquer outra pessoa que esteja envolvida com a distribuição e a segurança do romance. »¹ A autora do artigo afirma que Denise Spellberg, professora de História e Estudos do Médio Oriente da Universidade do Texas e especialista em Aisha, teve um papel fundamental na censura à publicação do livro e que alertou a editora para os perigos de uma reação de violência islâmica ainda maior do que a da publicação do livro Satanic Verses, do escritor Salman Rushdie, em 1988; ou os cartazes dinamarqueses com caricaturas de Maomé. Numa entrevista Denise Spellberg afirmara que o livro de Sherry Jones abusava dos factos históricos distorcendo-os, transformando uma história sagrada em pornografia softcore. Spellberg frisou depois no jornal americano Wall Street Journal que a decisão tinha sido tomada com base no parecer de vários estudiosos e considerou que o romance de Sherry Jones era uma representação errónea da vida de uma mulher real, Aisha, e do passado islâmico, que usa o sexo e a violência para atacar o profeta e a sua fé. Condenou ainda o caráter polémico e sensacionalista do livro por usar o sexo e a violência para vender o livro.
Porém, em meados de Agosto, Martin Rynjia, 44 anos, editor da editora independente Gibson Square, anunciou que iria publicar o livro no Reino Unido. Em Setembro foi encontrada uma bomba em sua casa, em Islington, norte de Londres. A polícia inglesa, que já estava de sobreaviso, prendeu de imediato os suspeitos da tentativa de fogo posto. O pequeno incêndio foi apagado imediatamente e ninguém ficou ferido. Os suspeitos foram acusados de « participação, preparação e incitação a actos de terrorismo »[2], por tentar provocar um incêndio no escritório da editora Gibson Square, segundo a polícia britânica. O editor da Gibson Square esteve sob proteção policial. Martin Rynjia tem mostrado muita coragem e persistência ao levar avante a publicação da obra. Entretanto, o livro foi publicado em Outubro de 2008 pela editora britânica independente, depois de ter sido adiado por represálias. The Jewel of Medina teve o seu lançamento no Reino Unido a 30 de Outubro. Martin Rynja, citado em El país classificou de imperativo o lançamento do livro, afirmando em comunicado :

« Senti imediatamente que era imperativo publicar o livro. Numa sociedade aberta tem de haver acesso livre a obras literárias apesar do medo. Como editora independente sentimos que não devemos ter medo das consequências do debate. Se um romance de qualidade lança luz sobre um lindo assunto do qual pouco sabemos no ocidente, mas temos um genuíno interesse nele, e não pode ser lançado cá, então isso realmente significa que o relógio retrocedeu até à idade das trevas. The Jewel of Medina tornou-se um importante barómetro do nosso tempo ». [3]

            A Gibson Square conta com outros trabalhos polémicos publicados, como o livro Blowing up Rússia (2002), escrito por Alexandre Litvinenko, o espião russo assassinado por envenenamento em Londres em 2006 com uma substância radioativa; If I Did It (2007), de O. J. Simpson; e Hard Call (2009), do senador republicano e veterano de guerra John McCain, ex-candidato às presidenciais nos Estados Unidos.
            Em Portugal ainda não foi publicado o livro de Sherry Jones. A Porto Editora, que analisou o livro, recusou em Setembro de 2008 a sua publicação. Ana Barros, editora da DEL-L, tinha assegurado ao Ípsilon [suplemento do jornal Público] que « se decidirmos que o livro vale a pena publicar porque é interessante não vamos pensar nas consequências políticas ». Segundo o comunicado de imprensa da editora portuguesa, pela voz de Manuel Alberto Valente diretor da Divisão Editorial Literária de Lisboa (DEL-L), da Porto Editora, a decisão de não publicar o livro não foi influenciada pela desistência da editora americana: « a Administração da Porto Editora assegurou-me, desde o início do processo, o apoio imprescindível para uma decisão livre, sem quaisquer receios e de acordo com os critérios definidos. Se a decisão fosse a de editar o livro, não haveria quaisquer hesitações »[4]. A decisão baseou-se no parecer extremamente desfavorável redigido por um dos consultores editoriais da Porto Editora, a quem o diretor pediu a análise do original. Segundo Manuel Valente, A Jóia de Medina é « um romance vulgar, pobremente escrito e pouco convincente nas suas personagens e enredo»[5]. Manuel Alberto Valente afirma que esta é uma « decisão de particular relevância, pois tínhamos possibilidade de lançar um livro com um enorme potencial comercial. Acabou por pesar o critério fundamental, o da qualidade literária ». [6] Eis um excerto do parecer de leitura:


I would not publish this.
I look at it from two points of view:
First, as a novel, it is trite, poorly written and unconvincing in its characters and its plot. It reads like a poorly researched item in the popular press, or a story in a low-quality women’s magazine. Second, as a piece of religious provocation, it has the potential to cause outrage – not because it is particularly offensive concerning Mohammed or Islam, but because it appears to be so inaccurate historically, that it seems to deliberately trivialise the Prophet and the religion. Unlike Satanic Verses, which has a base in serious literary philosophy, this reduces Mohammed’s life and work, through this banal story about one of his wives, to the level of schoolgirl fiction. I have to imagine that Ms Jones has done this consciously. At best, it is in poor taste; at worst, offensive.[7]

O excerto apresentado aponta duas razões para a não publicação do romance: por um lado a obra consiste num romance vulgar, pobremente escrito e pouco convincente nas suas personagens e enredo; por outro pode causar ultraje, não tanto pelo tratamento ofensivo de Maomé e do Islão, mas porque perverte a realidade dos factos históricos, trivializando a vida do profeta e a religião.
O romance foi publicado nos Estados Unidos pela editora Beaufort Books em Outubro de 2008. A Beaufort adiantou, segundo a BBC, que publica a obra para que o livro possa ser apreciado pela sua qualidade literária e não como uma potencial ofensa aos muçulmanos. Eric Kampmann, presidente da Beaufort Books afirma « Achámos que era o melhor para toda a gente... deixar que a conversa sobre o livro deixasse de ser a dos terroristas e passasse a ser a do mérito do livro ».[8]  Nos Estados Unidos a tiragem inicial ronda os 40 mil exemplares. Para além do Reino Unido e dos EUA, o livro já foi publicado na Sérvia e tem os direitos vendidos para Itália, Espanha, Hungria, Alemanha, Brasil e Macedónia. O livro já está a gerar polémica e, consequentemente, muitas vendas. Já é comparado à « crise religiosa » de Os versículos satânicos, ou aos cartoons dinamarqueses.


Receio da reação da comunidade muçulmana vs liberdade de expressão

A editora Random House não publicou o livro por receio de represálias por parte da comunidade muçulmana radical. Na verdade, no entender dos fundamentalistas, a representação das figuras sagradas é uma ofensa, sobretudo quando estas são subvertidas. Quando entendem que Maomé e a fé islâmica estão a ser atacados organizam manifestações, protestos e violência, em nome da religião muçulmana.
No mundo islâmico não há separação entre as leis e a religião muçulmana (sharia), a qual é frequentemente mal-interpretada e distorcida pelos fundamentalistas, em nome de Alá e da fé muçulmana. Na verdade, o alcorão não é tão restritivo para com as mulheres quanto os mais fanáticos querem fazer crer. Por exemplo, o Islão não proíbe as mulheres de trabalhar, atribuindo apenas um papel importante à mulher no desempenho das funções domésticas e familiares. A religião islâmica também permite às mulheres que se divorciem dizendo três vezes em público « eu divorcio-me ». 
Apesar da religião muçulmana não considerar a mulher um objeto, em muitos países islâmicos as mulheres são tratadas como tal, não usufruindo dos mesmos direitos que os homens. Na Arábia Saudita as mulheres não podem conduzir, mas no Bangladesh e no Paquistão já é permitido que as mulheres conduzam. No Paquistão, basta a suspeição de uma mulher poder ser adúltera, ou vítima de violação, para ser punida de uma forma hedionda, ao passo que, em iguais circunstâncias, os homens não sofrem os mesmos horrores. Neste país várias mulheres ativistas têm perdido a sua vida por protestar contra a injustiça das leis da sharia. No Irão, que tem leis muito rígidas em relação ao vestuário das mulheres e à sua conduta, há perseguições às mulheres, que frequentemente são espancadas e aprisionadas caso ousem afrontar as regras. No Afeganistão um homem muçulmano pode casar-se com uma menina de 12 anos se assim o quiser, uma vez que isso é aprovado pelos mullahs (líderes religiosos de mesquitas islâmicas). Muitas mulheres muçulmanas fogem dos seus países de origem para fugir às leis tirânicas islâmicas.
Em 2006 houve uma onda de violência na Europa e em vários países muçulmanos por causa das caricaturas de Maomé, publicadas inicialmente num jornal dinamarquês em 2005, que foram depois publicadas em vários países da Europa, como França, Espanha, Itália e Noruega. Houve manifestações da parte da comunidade muçulmana contra a publicação das caricaturas de Maomé, tendo morrido mais de uma dezena de pessoas durante esses protestos. Os fundamentalistas chegaram a apelar explicitamente ao assassinato dos autores das « blasfémias ». Foram atacadas e incendiadas por manifestantes embaixadas europeias e houve a tentativa de assassinato de um dos cartoonistas. A intolerância dos elementos mais radicais muçulmanos perante a liberdade de expressão ocidental e o seu fanatismo conduzem à violência. Os fundamentalistas não toleram que a sua religião seja posta em causa, partindo para a « guerra santa », cometendo um rol de atrocidades, queimando, apedrejando e assassinando. Enquanto nas sociedades ocidentais é reconhecida a liberdade de expressão e de imprensa, nos países islâmicos mais radicais ela não é permitida, havendo censura sempre que a religião é posta em causa.
Tendo em conta os argumentos da Random House para justificar a não publicação de The Jewel of Medina, vejamos alguns exemplos da reação de extremistas islâmicos perante publicações polémicas: Salman Rushdie, escritor indo-britânico, recebeu a 14 de Fevereiro de 1989 uma fatwa (édito religioso) de condenação à morte pelo líder religioso do Islão, Ayatollah Khomeini, relativamente ao livro Versículos Satânicos (Satanic Verses no original), de 1988. O livro, polémico, refere-se a uma discutida tradição muçulmana segundo a qual Maomé acrescentou versículos de inspiração diabólica ao Alcorão, que mais tarde retirou ao perceber a sua maléfica influência. Causou controvérsia imediata no mundo islâmico, pelo que originou, para além da fatwa, imensos protestos, manifestações e atos de violência em todo o mundo, incluindo o incêndio de livrarias e queimas do livro, considerado « blasfémia contra o Islão », tendo sido banida a sua publicação em muitos países com grandes comunidades islâmicas. Para além disso, Khomeini, que governava o Irão, condenou Rushdie pelo crime de « apostasia » - fomentar o abandono da fé islâmica – que, de acordo com a hadith (corpo de leis, lendas e histórias sobre a vida de Maomé), é punível com a morte. Foi anunciado a todos os muçulmanos o dever de assassinar o escritor e os editores do livro conscientes do seu conteúdo, conforme a fatwa. Devido a estes factos, Rusdhie foi forçado ao exílio e a viver sob proteção policial por muitos anos. O tradutor japonês do livro foi assassinado, o tradutor italiano sobreviveu a um ataque e o editor norueguês sobreviveu a quatro tiros. No entanto, a editora Viking Penguin, tendo recebido inúmeras ameaças de bomba, continuou a publicar o livro em capa dura, mas hesitou em lançar a versão livro de bolso. Na altura, surgiram muitos intelectuais indignados, condenando os “ayatolahs” (fundamentalistas islâmicos). Vinte anos depois de Versículos Satânicos, Rushdie fez fortes críticas à sua editora, Random House, após esta ter mudado de ideia e ter resolvido não publicar o livro de Sherry Jones por medo de retaliação dos muçulmanos, considerando a sua atitude censura através do medo. Taslima Nasreen, nascida no Bangladesh, é outro exemplo de escritora condenada pelos fundamentalistas islâmicos. Tem escrito sobre o tratamento das mulheres pelo Islão, nomeadamente dos abusos sexuais de que são vítimas. As suas perspetivas feministas são vistas como críticas ao Islão e à religião em geral, pelo que sofreu várias ameaças de morte, vivendo frequentemente em exílio. Naguib Mahfu, escritor nascido no Cairo, Prémio Nobel da Literatura em 1988, também foi condenado pelos fundamentalistas islâmicos pela publicação, em 1959, do romance Os filhos do nosso bairro, Children of Gebelawi na tradução inglesa. O livro foi banido no Egito devido à controvérsia levantada pelo recurso a personagens alegóricas, representando Alá, personagens bíblicas (Caim e Abel) e profetas do Islão, entre os quais Maomé, Moisés e Jesus. Em 1994, na sequência dos apelos de um clerical islâmico radical para que o autor fosse morto por blasfemar nos seus livros contra a religião muçulmana, foi esfaqueado no pescoço por um fundamentalista islâmico, enquanto saia da sua casa no Cairo. Estes são alguns exemplos de escritores que geraram polémica por abordarem a religião muçulmana criticando os aspectos mais condenáveis do fanatismo e por representarem figuras sagradas. Apesar de terem sofrido as ameaças dos islâmicos radicais, foram acolhidos pelo ocidente em defesa da liberdade de pensamento e expressão.
A decisão de publicar um livro que romanceia factos históricos e religiosos ou não o publicar é polémica, tendo em conta o historial de reações a obras publicadas alusivas à religião muçulmana e o historial de condenações de autores acima descrito. A atitude da Random House de não publicar o romance em torno de Maomé e Aisha por receio das repercussões que poderia ter na segurança de todos os envolvidos na publicação e venda do livro é, portanto, compreensível.
A polémica em torno da « blasfémia » (segundo os islâmicos radicais) imbrica na liberdade de expressão, pois, de acordo com o fundamentalismo islâmico está limitado todo o tipo de expressão e representação de figuras sagradas islâmicas, incluindo a criação literária. Os ofendidos com The Jewel of Medina são sobretudo os fundamentalistas islâmicos que não toleram a representação de figuras religiosas, nem que a sua religião seja posta em causa nem criticada. Enquanto que no Ocidente já se aprendeu a tolerar as críticas e a aceitar a liberdade de expressão e a livre criação literária e ficcional, os fundamentalistas islâmicos não toleram essa mesma liberdade de criticar a sua fé e o seu profeta, fazendo ameaças, atentados, lançando fatwas a quem enfrentar o fanatismo.
Ao não publicar o livro de Sherry Jones, a Random House está a ceder ao terrorismo islâmico para assim assegurar a segurança de todos os envolvidos na publicação do livro e a não proporcionar a leitura de mais uma obra literária que romanceia a vida de figuras históricas com uma posição relevante na religião muçulmana, como Aisha, considerada a mãe dos crentes islâmicos, e o profeta Maomé. A história poderia ter o seu interesse enquanto ficção. Coloca-se, sem sombra de dúvida, o problema da liberdade de expressão, uma vez que a editora foi impelida a não publicar o livro por haver um segmento da população que poderia reagir violentamente. Por outro lado, devido ao receio da reação da comunidade muçulmana mais radical, a editora perde uma oportunidade de vender um livro com potencial comercial que daria lucros à editora. 
A história tem-nos provado que a denúncia dos horrores e das injustiças e a luta pelos valores universais, entre os quais a liberdade de expressão (pelo menos para o mundo ocidental) concorrem para a formação de uma nova mentalidade e, consequentemente, para a evolução da sociedade. Um exemplo disso é a evolução do feminismo ao longo da história no ocidente, as conquistas que as mulheres ocidentais foram obtendo. Se os escritores acima referidos como denunciadores e críticos do fundamentalismo através da escrita não tivessem escrito sobre esses males, não haveria a esperança de que alguma coisa pudesse mudar no mundo islâmico. A publicação de livros sobre a vida dos muçulmanos, o fanatismo e as injustiças, nomeadamente para com as mulheres, os seres mais vulneráveis para a lei islâmica, é, sem dúvida, um contributo para a liberdade de expressão e para a consciencialização dos abusos da parte dos membros dirigentes e suas leis. O mesmo se passa em relação às obras que ficcionam a vida de Maomé.
O escritor e poeta Marwa El-Naggar do “IslamOnline.net” chegou a defender a publicação de The Jewel of Medina em defesa da liberdade de expressão e da criação literária, ainda que reconheça os desvios da autora face à história.


Qualidade literária da obra vs impacto comercial

A Porto Editora recusou a publicação do romance com o argumento da qualidade literária. Se lermos com atenção o comunicado do consultor da Porto Editora sobre o livro, ficamos a saber que a recusa é justificada pela deturpação de factos históricos, pelo carácter provocador e pela trivialização da vida do profeta e do islamismo. O consultor da editora considerou que o livro podia ser considerado ofensivo. Não há qualquer referência ao receio de violência por parte da comunidade muçulmana mais radical.
Teoricamente, um bom editor deve escolher os melhores livros a fim de chegar ao maior número de leitores. No entanto, a qualidade literária não é o único argumento válido para o mundo editorial, pois o mundo editorial é um negócio e todas as editoras desejam ter lucro e nem sempre os livros com maior qualidade literária são os mais vendidos, excetuando os casos de autores reconhecidos como José Saramago, António Lobo Antunes ou Miguel Sousa Tavares. A decisão de editar ou não um livro pode não ter que ver com o gosto e a vontade dos editores, pois é necessário estar atento às tendências do mercado, acompanhar os gostos dos leitores e perceber o impacto comercial que cada livro poderá ter. Na verdade, as editoras também estão sujeitas às modas e, se querem ter sucesso, devem ter em conta os livros que mais vendem, apostando num trabalho de seleção de livros a publicar feito com todo o rigor, prevendo se o livro é vendável. Numa altura em que está tanto na moda os livros sobre temas muçulmanos (mulheres oprimidas, crianças mal tratadas, a religião islâmica), The Jewel of Medina poderia ser um caso de sucesso editorial, tal como Manuel Alberto Valente afirma. No entanto, para a editora, o critério da qualidade literária e o facto de poder ser ofensivo para a comunidade muçulmana teve mais peso do que o valor comercial do livro. Na verdade, a formação, os princípios e os valores também não estão ausentes do mundo dos livros pois editar livros não é só para dar lucro e todo o editor gosta de editar livros de que se orgulhe.
A recusa da publicação do livro de Sherry Jones foi justificada com o critério de qualidade literária. Parece-me, no entanto, que este argumento perde peso perante o catálogo da Porto Editora. Apesar de ser uma referência a nível de material didático, é errado pensarmos que apenas publica potenciais Prémios Nobel da Literatura, pois, se virmos o catálogo, apercebemo-nos que publica também muita literatura de pouca qualidade. Da lista de livros publicados encontra-se o livro Vocês sabem do que estou a falar, de Octávio Machado (ex jogador e treinador do Porto e do Sporting); São Cipriano, de Cipriano, o feiticeiro; Eu Sou o Poder da Mente, de Aldina Rocha; Luiz Felipe, o Homem Por Trás de Scolar, de José Carlos Freitas e O Código Quique (treinador do Benfica), de Rui Pedro Brás. Conhecendo nós a frase de Manuel Alberto Valente « É preciso publicar o que dá para poder publicar o que não dá », torna-se estranho que não tenha aceitado publicar uma obra como The Jewel of Medina. Ainda que o livro de Sherry Jones tenha sido considerado trivial e menosprezando o caráter histórico e religioso do profeta Maomé, este poderia ter sido editado pela Porto Editora, tendo em conta as suas publicações.
Um aspeto a ter normalmente em conta pelas editoras quando editam um livro é saber se é a primeira obra do autor. No caso de The Jewel of Medina, é o primeiro romance da autora e não sabemos se este critério terá tido algum peso para Manuel Valente, que poderá ter considerado arriscada a sua publicação e por isso ter aceitado a opinião do consultor. Porém, depois da polémica surgida nos EUA a propósito do livro de Sherry Jones, a publicidade ao livro estava feita e muitos leitores estariam curiosos para conhecer o livro e o número de vendas seria grande.
Será que o livro é realmente pobre a nível literário e de escrita? A Beaufort Books considera que o livro tem a sua qualidade literária.
A divergência de opiniões sobre o livro de Sherry Jones tem que ver com o facto de um bom livro não ter o mesmo significado e valor para um editor ou para outro (Les métiers de l’Édition, 2002). Tanto a Random House como a Porto Editora entenderam que The Jewel of Medina não tinha qualidade literária para ser publicado e a Random House assumiu o receio de represálias pelos muçulmanos radicais. Do outro lado estão as editoras Beaufort Books e Gibson Square que entenderam por bem publicar a obra, considerando ambas que a obra tem qualidade literária e interesse pelo conhecimento da história árabe (dentro do que há de verídico na obra) e pela perspetiva aberta sobre o mundo oriental. A Gibson Square defendeu convictamente a liberdade de expressão e de criação literária.
Para a Beaufort Books, a autora revela falta de conhecimentos históricos básicos, mas revela também exatidão e respeito pelo Islão na sua história. A editora considera que a autora toma uma grande liberdade ao representar a História, adaptando-a do modo que melhor convinha ao desenvolvimento do romance.
The Jewel of Medina é um romance histórico. Como se define um romance histórico? O romance histórico é uma narrativa literária ou artística sobre factos históricos reais ou inventados a partir de categorias estéticas. Não é a representação da narrativa histórica científica, mas um produto artístico de caráter ficcional por misturar acontecimentos verdadeiros (históricos) com outros ficcionados, sendo por isso um género ambíguo. Enquanto produto artístico e estético, a sua finalidade é proporcionar o prazer estético da escrita e da leitura, aliado ao conhecimento da história. O romance histórico não é uma réplica exata dos factos históricos, pois não está obrigado à verdade, tendo liberdade para explorar esteticamente os factos históricos e as suas possibilidades. Não fazem, portanto, sentido, na definição de romance histórico termos limitadores como “fidelidade”, “verdade aproximada”, “reprodução” ou “reconstituição”, “dados rigorosamente históricos”. Neste sentido, não existem limites ficcionais para o romance histórico.
A autora reconhece os desvios dos factos históricos e conta que inicialmente tinha previsto um enredo mais fiel à história de Aisha e Maomé, mas que o editor a aconselhou a alterá-lo porque não seguia as caraterísticas de um romance. Defende-se ainda dizendo que a ficção se encontra no domínio da realidade que é subjetiva e, como tal, a obra não podia ser uma réplica exata dos acontecimentos históricos. The Jewel of Medina apenas tem de respeitar as caraterísticas próprias do seu género, um romance histórico.
Abordaremos alguns exemplos de passagens em que a autora não segue aquilo que é referido como verdade nos documentos históricos. Segundo os relatos históricos, num dia em que Aisha e o profeta se deslocavam numa caravana, Aisha perde acidentalmente o seu colar, voltando para trás para o apanhar. A caravana avança sem que Maomé se aperceba de que ficara para trás. Entretanto, um homem, Safwan ibn Al-Mu’attal, leva Aisha para sua casa, um tanto a contragosto dela. Aisha é depois acusada de adultério. No livro, a autora transforma estes factos para tornar a história mais atraente: Aisha estava apaixonada por Safwan ibn Al-Mu’attal e diz a Maomé que tinha perdido o colar para poder voltar atrás e fugir com o seu amado. Mais tarde apercebe-se do quanto estava errada e volta para Maomé.
Denise Spellberg considera que as cenas de amor entre Aisha e Safwan ibn Al-Mu’attal não correspondem à realidade e considera-as de mau gosto e sensacionalistas. Antes de mais, a posição de Spellberg revela um juízo de caráter estético e ético. Os valores são outro campo que tem necessariamente implicações na decisão de publicar ou não livros, dado o papel cultural e espiritual do livro. Se o editor considerar um livro que lhe foi entregue para analisar um mau exemplo, condenável ou com efeitos perversos na sociedade, sendo livre de publicar ou não esse livro, o editor não o irá publicar. A autora justifica a sua opção dizendo que usou a relação de Aisha e Safwan ibn Al-Mu’attal como uma metáfora pois pretendia mostrar o quanto Aisha tinha amadurecido, deixando de ser uma mulher controlada pelos homens e suspirando por eles para se transformar numa mulher com o controlo da sua própria vida, mais consciente e com mais sabedoria. Para Spellberg, o romance, devia respeitar os factos históricos e não optar por uma representação errónea da vida de Aisha e por uma estratégia de marketing baseada no sensacionalismo.
Uma outra metáfora utilizada por Sherry Jones está associada à espada que Aisha enverga no romance. A história islâmica não representa em nenhum momento Aisha com uma espada, nem tal seria possível. A autora justifica a sua opção referindo que a espada é uma metáfora que simboliza o amadurecimento de Aisha.
Uma outra passagem criticada pela académica por não ser fiel à realidade é quando Aisha disputa a posição de hatun (a chefe das mulheres de Maomé), pela qual tem obsessão e que é uma tradição turca sem qualquer base no Islão. Quando alcança esse estatuto, o profeta e as suas outras mulheres ajoelham-se perante Aisha, que também não faz parte da cultura islâmica. A autora defende a passagem dizendo que este é um estratagema próprio da ficção, que importou da tradição turca para mostrar a rivalidade dentro do harém.
Para Denise Spellberg é preocupante o facto da autora ter posto na boca de Aisha uma história que não é verdadeira, que falsifica a realidade como sendo a história da personagem. No entender desta académica não é correcto distorcer factos históricos
Aisha é representada como se vivesse no século XXI pois possui determinadas caraterísticas impossíveis para o século VII e muito menos no mundo oriental. Aisha aparece muito ocidentalizada pois sonha com a liberdade, o poder e o controlo da sua própria vida, não aceita o casamento que lhe foi imposto e que a reduz a objecto, não aceita a reclusão, que não se aplicava na era islâmica, não aceita o hatun nem o durra (a segunda mulher) nem aceita a superioridade dos homens sobre as mulheres.
Instigado por Umar Al-Khattab, Maomé obriga as suas mulheres a cobrir a cara, depois de ter sido lido o versículo respeitante ao véu. Aisha sente que lhe foi roubada a liberdade. A autora considera que Aisha pode ter pensado dessa maneira e afirma que, ao escrever o romance, teve a intenção de a representar como um modelo de mulher, e mostrar que as mulheres tinham mais poder na era da formação do Islão do que habitualmente pensam os ocidentais, afirmando ainda que tinham mais poder do que atualmente.
Outro motivo de crítica é o facto da autora ignorar a representação utópica do período da formação do islamismo, que não tem em conta as maquinações políticas e históricas da época e representar as personagens islâmicas como humanas com seus defeitos e fraquezas, salientando os defeitos.
Outra falha da autora, segundo as vozes críticas, tem que ver com a personagem Caliph Umar ibn al-Kattib, conhecido na história árabe por ser muito restrito com as mulheres e por ter participado na primeira guerra civil islâmica. No romance de Sherry Jones é um vendedor de chapéus de mulher, ávido de poder.
O romance faz crer aos leitores que os casamentos de Maomé mais não são que um capricho para satisfazer a luxúria do profeta. As mulheres são representadas como de uma grande beleza, cada uma tem a sua cor de olhos e de cabelo e provêm das mais diversas partes do mundo. A autora afirma que se os leitores têm esta impressão é porque este é o ponto de vista de Aisha, que revela ciúmes ao longo do romance.
O romance mostra-nos uma Aisha que nada tem a ver com um anjo, ciumenta, de acordo com os relatos históricos, mas o facto da personagem ser representada como  « impulsiva, egocêntrica, mentirosa e vingativa que quebra as suas promessas e só deseja a glória no campo de batalha »[9] não corresponde à verdade, uma vez que Aisha é historicamente reconhecida como sendo sincera e honesta.
Em suma, os argumentos de Denise Spellberg contra a publicação do livro prendem-se com o facto da história ser uma falsificação dos factos históricos e da personagem de Aisha, dando uma imagem errada da religião e da história islâmica a todos os que não as conhecem bem.
Se no entender da especialista em Aisha esta é uma história falsa que engana todos os que ignorem a personagem, distorcendo a realidade e a essência da personagem e, consequentemente a imagem da religião, a Beaufort Books e a Gibson Square entendem que é legítimo ficcionar a partir de personagens históricas. Em causa está não só a questão do género literário da obra, mas também a questão da liberdade de expressão e de criação literária.
Ainda que haja muitas passagens no livro que não podem ser entendidas como pertencendo à realidade histórica, também fazem parte do livro passagens que têm em conta a verdade histórica. Um exemplo disso é a representação de Maomé como um líder sabedor, amável, compassivo, pela igualdade e não violento. Não podemos negar que a história de Sherry Jones, feita a partir de factos históricos é uma reinvenção, uma outra história, ficcional, que pode ser apreciada pela sua grande beleza e valor literário.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


LEGENDRE, Bertrand, Les Métiers de l’Édition, Paris: ECL, 1999.

« The Jewel of Medina, a fictionalized version of the life of Lady Aisha, has reopened the debate on portraying Islam’s sacred figures »
in   « Beaufort Books », 16  de Outubro de  2008,  <  http://www.beaufortbooks.com/news. php?id=44 >   (acedido   em  19   de Fevereiro  de 2009).
  
» Gibson Square buys Jewel of Medina for UK » in « Bookseller.com », 4 de Setembro de 2008, < http://www.thebookseller.com/news/6_6332-gibson-square-buys-jewel-of-medina-for-uk.html > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009.)

 « The Jewel of Medina, a fictionalized version of the life of Lady Aisha, has reopened the debate on portraying Islam’s sacred figures »
in The Wall Street Journal, 9 de Agosto de 2008, < http://online.wsj.com/article/ SB121824366910026293.html > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

« I Didn't Kill 'The Jewel of Medina' »
in The Wall Street Journal, 9 de Agosto de 2008, < http://online.wsj.com/article/SB121824 366910026293.html?mod=googlenews_wsj > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).
  
« You Still Can't Write About Muhammad » in The Wall Street Journal, 6 de Agosto de 2008, < http://online.wsj.com/article/SB_121797979078815073.html > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).


  « Livro de Sherry Jones é publicado nos EUA »
in Diário de Notícias, 8 de Outubro de 2008, < http://dn.sapo.pt/2008/10/08/artes/livro_ sherry_jones_e_publicado_eua.html > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

« Empresa alega falta de qualidade da obra, Porto Editora recusa editar romance sobre Maomé »
in Público, 15 de Setembro de 2008,  < http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=13 42832 > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

« Literatura: Romance sobre casamento de Maomé sai em Outubro por nova editora »
in « literatura pnet », 4 de Setembro de 2008, < http://www.pnetliteratura.pt/noticia.asp?id =95 > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

« Porto Editora desiste de publicar ‘A Jóia de Medina’, um dos livros mais polémicos do ano » in « Bibliotecário de Babel », < http://bibliotecariodebabel.com/geral/porto-editora-desiste-de-publicar-a-joia-de-medina-um-dos-mais-polemicos-livros-do-ano/ > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

« Literatura: Porto Editora recusa editar romance sobre Maomé por “falta de qualidade” » in « Notícias.rtp.pt », 15 de Setembro de 2008,   < http://ww1.rtp.pt/noticias/index.php?arti cle = 363223&visual=26& tema=5 > (acedido em 19 de Fevereiro de 2008).

« Livro polêmico sobre esposa de Maomé é lançado nos EUA »
in « BBC Brasil.com » < http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/10/0810 07_livromaome.shtml > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

« Casa do editor britânico da Gibson Square alvo de tentativa de fogo posto »
in Público, 29 de Setembro de 2008, < http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=13 44287&idCanal=14 > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).











[1] Tradução de uma citação do artigo « You Still Can't Write About Muhammad », in  The Wall  Street Journal , 6 de Agosto de 2008, < http://online.wsj.com/article/SB121797979078815073.html > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

[2]  « Casa do editor britânico da Gibson Square alvo de tentativa de fogo posto », in Público, 29 de Setembro de 2008,  < http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1344287&idCanal=14 > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).
  
[3] Traduzido do artigo « Gibson Square buys Jewel of Medina for UK », in « Bookseller.com », 4 de Setembro de 2008,   < http://www.thebookseller.com/news/6332-gibson-square-buys-jewel-of-medina-for-uk.html > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009.)

[4] « Porto Editora desiste de publicar ‘A Jóia de Medina’, um dos livros mais polémicos do ano », in « Bibliotecário de Babel », < http://bibliotecariodebabel.com/geral/porto-editora-desiste-de-publicar-a-joia-de-medina-um-dos-mais-polemicos-livros-do-ano/ > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

[5] « Empresa alega falta de qualidade da obra, Porto Editora recusa editar romance sobre Maomé », in Público, 15 de Setembro de 2008,  < http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=13 42832 > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

[6] « Porto Editora desiste de publicar ‘A Jóia de Medina’, um dos livros mais polémicos do ano », in « Bibliotecário de Babel », < http://bibliotecariodebabel.com/geral/porto-editora-desiste-de-publicar-a-joia-de-medina-um-dos-mais-polemicos-livros-do-ano/ > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).
[7] « Porto Editora desiste de publicar ‘A Jóia de Medina’, um dos livros mais polémicos do ano », in « Bibliotecário de Babel », < http://bibliotecariodebabel.com/geral/porto-editora-desiste-de-publicar-a-joia-de-medina-um-dos-mais-polemicos-livros-do-ano/ > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

[8] « Livro de Sherry Jones é publicado nos EUA », in Diário de Notícias, 8 de Outubro de 2008, < http://dn.sapo.pt/2008/10/08/artes/livro_ sherry_jones_e_publicado_eua.html > (acedido em 19 de Fevereiro de 2009).

 [9] « The Jewel of Medina, a fictionalized version of the life of Lady Aisha, has reopened the debate on portraying Islam’s sacred figures », in   « Beaufort Books », 16 de Outubro de  2008, <  http://www.beaufortbooks.com/news.php?id=44 >   (acedido   em  19   de Fevereiro  de 2009).